As considerações do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) sobre as relações entre linguagem e ritual, presentes no conjunto de artigos que compõem a obra A economia das trocas linguísticas. O que falar quer dizer (1982), derivam inicialmente de uma crítica às ideias do filósofo e linguista britânico J. L. Austin (1911-1960). Segundo Austin, a força ilocutória do discurso, sua capacidade de promover ações, encontra origem nas próprias palavras, entendidas como objetos autônomos, ideias que, em linguística, ficaram conhecidas como a “teoria dos atos da fala”. Para Bourdieu, haveria um equívoco nas formulações dos linguistas cuja origem epistemológica remonta à divisão que Ferdinand de Saussure (1857-1913) realizou entre a ciência da língua (linguística interna) e a ciência dos usos sociais da língua (linguística externa). Bourdieu rejeita ainda o argumento de que as palavras fazem “coisas” – tal como indicava o próprio título da obra mais influente de Austin How to do things with words (1962), pois a eficácia da linguagem verbal, sobretudo em termos rituais, não deve ser entendida de forma autônoma, independente das condições sociais de sua produção. Em qualquer tipo de linguagem, segundo ele, devem ser consideradas as condições institucionais de produção e recepção dos discursos. Para o sociólogo, a ação mágica estende à natureza a ação verbal que, sob certas condições, afeta os homens; nesse sentido interessam-lhe sobretudo os atos do que denomina “magia social”. Tais atos não podem ser realizados por qualquer agente; a maneira e a matéria do discurso proferido (pelo agente autorizado a realizá-lo) dependem da posição social do interlocutor, que comanda o acesso ao que ele chama de “palavra legítima”. Assim, a linguagem ritual está circunscrita a um conjunto de condições interdependentes que compõem o ritual social. A magia dos ritos é dirigida pelo sistema das relações sociais constitutivas do próprio ritual e não pelos discursos e conteúdos de consciência.
Tomando a linguagem ritual em sentido amplo, não apenas em seu aspecto verbal, Bourdieu realiza considerações críticas à teoria dos ritos de passagem formulada por Van Gennep (1873-1957) e ampliada por Victor Turner (1920-1983), sugerindo uma mudança na abordagem relativa a esses rituais, da passagem à “separação”, o que o leva a propor os “ritos de instituição”. Segundo ele, a descrição dos detalhes simbólicos dos rituais tende a mascarar o efeito essencial do rito: a separação entre iniciados e não-iniciados. Tal mudança de foco e de designação seria capaz de ampliar o poder de generalização e explicação dos rituais sociais, pois os ritos de instituição, além de confirmarem diferenças inscritas na natureza – como os ritos de circuncisão que marcam e confirmam, mais do que a diferença entre homens e meninos, a distinção entre homens e mulheres – seriam capazes de inscrever e naturalizar diferenças presentes no contínuo do tecido social, como fazem os concursos, premiações e investiduras. Bourdieu retoma aí a importância da “linguagem autorizada” de um sistema social constituído por agentes, instituições e palavras adequadas, que servem de base para a validade e reconhecimento do ritual de instituição. Este ritual produz distinções que delimitam as diferentes classes, o que termina por imprimir no iniciado uma segunda natureza, um habitus, com a ajuda de liturgias específicas.
A teoria dos ritos de instituição pode ser entendida como tributária da teoria bourdieusiana da distinção social. Em A distinção (1979) o autor explica o funcionamento de “estratégias de condescendência”: o privilégio que elementos das camadas sociais mais altas possuem, graças à sua consagração nos diversos ritos de instituição, de transgredirem os limites estabelecidos, aproximando-se do comportamento ou da linguagem das camadas inferiores. Este é, por exemplo, o ato do intelectual que usa a linguagem informal em espaços de formalidade, ou do aristocrata que bate nas costas do cavalariço. Em atos como estes, produz-se um adicional: o de tomar liberdades com o próprio privilégio sem que a posição ou distinção, do intelectual ou do aristocrata, seja colocada em dúvida.
Como citar este verbete:
ASSENSIO, Cibele Barbalho; OLIVEIRA JÚNIOR, Jorge Gonçalves. “Linguagem e ritual - Pierre Bourdieu”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/linguagem-e-ritual-pierre-bourdieu>
ISSN: 2676-038X (online)
Cibele Barbalho Assensio e Jorge Gonçalves de Oliveira Júnior
BOURDIEU, Pierre, La distinction. Critique sociale du jugement, Paris, Les éditions de Minuit, 1979 (Trad. Bras. Daniela Kern, Daniela e Guilherme J. de F. Teixeira. Porto Alegre, Editora Zouk, 2007)
BOURDIEU, Pierre, Ce que parler veut dire: l'économie des échanges linguistiques, Arthème Fayard, 1982 (Trad. Bras. Sérgio Miceli. São Paulo, EDUSP, 1996)
BOURDIEU, Pierre, Esquisse d'une théorie de la pratique précédé de Trois études d'ethnologie kabyle, Genève, Droz, 1972 (Trad. Portuguesa, Oeiras, Celta Editora, 2002)
BOURDIEU, Pierre, Le pouvoir symbolique, Paris, Éditions de Minuit, 1989 (Trad. Bras. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992)