obra
Manual de etnografia

O Manual de etnografia (1947) é um compêndio que reúne anotações de alguns alunos do curso de “Instruções de Etnografia Descritiva” ministrado pelo antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) entre 1926 e 1940 no Instituto de Etnologia da Universidade de Paris, instituição fundada pelo próprio Mauss e por Lucien Lévy-Bruhl (1857-1937), em 1925. O curso, frequentado por público diverso, forma a primeira geração de etnólogos franceses em campo, entre os quais: Maurice Leenhardt (1878-1954), André Schaeffner (1895-1980), Marcel Griaule (1898-1956), Michel Leiris (1901-1990), Alfred Métraux (1902-1963), Denise Paulme (1909-1998), André Leroi-Gourhan (1911-1986) e Louis Dumont (1911-1998).

O livro é um condensado de orientações que sugerem questões e caminhos de investigação acerca das sociedades estudadas, adquirindo feições inconclusas, características de outras obras do autor, entre as quais Esboço de uma teoria geral da magia (1902-03), Morfologia social: ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós (1904-05) e Ensaio sobre a dádiva (1923-24). Marcel Mauss, como sabido, nunca escreveu um livro completo; todos os seus ensaios estão marcados por um movimento de incompletude, passível de ser observado nas aulas sintetizadas no Manual de etnografia. Mais do que fornecer respostas, o manual, que tem a forma de “amálgama de pormenores” nos seus termos, permite ver a forma de seu pensamento, que ignora os planos convencionais e insiste ser a curiosidade insaciável do etnógrafo de campo a alma do trabalho antropológico.

A opção dos autores que compilaram as aulas do antropólogo francês no Manual foi retomar na íntegra as falas do mestre, sem modificações ou adaptações a formulações posteriores. A intenção é mostrar o estado e a forma do conhecimento nos anos em que os cursos foram ministrados; as aulas respondem a questões práticas, instruindo a observar e classificar os fenômenos sociais. O professor ensina aos alunos que a teoria não existe por si mesma e que só a análise permite transformar dados em fatos; para tanto, faz-se necessário a reunião da maior quantidade possível de elementos, materiais e imateriais, de modo que a compreensão de uma determinada sociedade seja possível. A leitura do volume assinala a distância entre a erudição e a ambição enciclopédica da ciência antropológica concebida por Mauss e o conhecimento especializado nos dias atuais; é o próprio autor quem ressalta: a etnografia exige que o profissional seja, ao mesmo tempo, cartógrafo, estatístico, historiador e romancista.

O Manual de etnografia é dividido em nove partes: observações preliminares, métodos de observação, morfologia social, tecnologia, estética, fenômenos econômicos, fenômenos jurídicos, fenômenos morais e fenômenos religiosos. Apesar de cada uma das partes se debruçar sobre pontos aparentemente distintos da vida social, os capítulos se comunicam, sublinhando as relações existentes entre os diferentes aspectos tratados. Uma sociedade não se explica por apenas um de seus aspectos, defende Mauss, mas pelo conjunto e articulação de suas partes. O fim da investigação etnográfica é encontrar a totalidade concreta, reveladora da coerência interna de cada sociedade, o que o leva a recusar as separações entre os fenômenos estudados. Nos cursos, ele chama a atenção ainda para a sobre-determinação dos eventos, que não se explicam por uma única causa, o que evidencia a presença em suas aulas do conceito de fato social total. Essa perspectiva destaca serem os fatos sociais multifacetados, possuindo, ao mesmo tempo, dimensões econômicas, sociais, morais, estéticas, políticas, religiosas etc.

A atualidade das instruções de Marcel Mauss podem ser aferidas por diferentes razões, por exemplo quando ele sugere que o nativo seja tomado como autor e não como mero informante, ou quando lembra que as sociedades consideradas mais simples podem ser as mais complicadas, o que o leva a equiparar a complexidade do pensamento indígena ao ocidental. Mas no centro das lições e contribuições do Manual encontra-se a defesa de que a etnografia deve sempre partir de uma atenção detida aos fatos, ao “melanésio de tal ou qual ilha”, como ele dirá depois no Ensaio sobre a dádiva (1923-24). Além dos ensinamentos teórico-metodológicos fornecidos, o volume mostra uma cartografia do pensamento do autor, mais um dos seus interesses.

Como citar este verbete:

PEREIRA, Bruno Ribeiro da Silva; BERBEL, Gustavo dos Santos & MACHINI, Mariana Luiza Fiocco. 2015. "Manual de etnografia". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/manual-de-etnografia>

ISSN: 2676-038X (online)

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M
data de publicação
08/12/2015
autoria

Bruno Ribeiro da Silva Pereira, Gustavo dos Santos Berbel e Mariana Luiza Fiocco Machini

bibliografia

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