conceito
Migração - Abdelmalek Sayad

“A imigração é um fato social total” para Abdelmalek Sayad (1933-1998). Esta é certamente uma das frases mais citadas do arcabouço conceitual do sociólogo argelino. Inspirado em Marcel Mauss (1872-1950), Sayad convida a olhar para o fenômeno migratório em sua totalidade: ele toca e transforma todas as esferas das sociedades, seja a de emigração, seja a de imigração. Para investigar o fenômeno é necessário recorrer a diferentes campos de estudos; nesse sentido, a categoria migração é central em sua reflexão sobre a vida social.

Esse objeto de pesquisa se impôs para o autor quando ele realizava estudos de campo com as comunidades cabilas no norte da Argélia, junto a Pierre Bourdieu (1930-2002). O trabalho levou-o a entender como a violência do colonialismo francês – e do processo de modernização implícito – tinha na migração um de seus efeitos mais perversos e perenes para as sociedades tradicionais e, posteriormente, para toda a sociedade argelina. A pesquisa de campo, por meio de uma etnossociologia ou “etnologia combativa”, teve prosseguimento quando ele próprio se transformou em um imigrante na França e, apesar das barreiras institucionais, conseguiu exercer sua profissão, dedicando-se a estudar a comunidade magrebina naquele país. Uma das contribuições de sua abordagem é situar historicamente o fenômeno migratório como produto da atuação do sistema de colonização no passado e, a partir disso, analisar seus prolongamentos no presente (em suas formas neocoloniais).

De acordo com o autor, não apenas a migração deriva diretamente do colonialismo como prolonga e faz sobreviver o sistema colonial. A “condição de colonizado”, da qual se origina o migrante, persiste nas suas condições de trabalho; de moradia; na interdição da sua existência enquanto ser político; nas barreiras sociais e jurídicas que enfrenta; no lugar de exclusão a ele destinado; na atração que sente por emigrar para sua (ex) metrópole; nas questões identitárias de seu grupo social etc.

Polícia de Paris, Serviço de Identidade Judiciária. Cabilas empregados na limpeza urbana, maio de 1917. Fotografia, gelatina de brometo de prata sobre papel baritado. Biblioteca Histórica da Cidade de Paris. Imagem em domínio público.

Focalizando a migração argelina para a França, seu artigo “As três idades da migração” (1977) sustenta a necessidade de situar o fenômeno em um processo histórico, dividido em idades. Na primeira, a figura central do êxodo rural forçado das populações cabilas é o camponês desenraizado da terra e de sua identidade camponesa. Proletarizado, ele vai suprir a necessidade de mão de obra da indústria francesa, embora sinta o pertencimento à suas origens. As relações hierarquizadas entre países e suas economias prolongam esse processo migratório originário, acentuando o caráter sistêmico que rege a relação entre economias dominantes e dependentes. Na idade seguinte da migração, nota-se uma geração que emigra por não ver mais sentido na agricultura e no pertencimento à sociedade de origem, formando, assim, uma mão de obra ideal e barata para o mercado de trabalho. Por fim, na terceira idade, Sayad analisa o fenômeno a partir de uma perspectiva segundo a qual os Estados-nação são cúmplices desses movimentos populacionais, em função dos “déficits demográficos” e da necessidade de trabalhadores. Aí, o núcleo familiar passa a ter maior presença na sociedade de destino do que na de origem; novas gerações nascem na sociedade de imigração, não mais se identificam com o país de origem – nem com a cultura e língua de seus pais – mas seguem aprisionadas aos efeitos da  relação de dominação existente entre os países de origem e destino. Ao resgatar uma dimensão diacrônica de análise, Sayad demonstra como o fenômeno migratório não pode ser compreendido sem os longos processos históricos que situam os países periféricos e suas populações em condições marginais no interior da divisão internacional do trabalho.

Tal perspectiva vem acompanhada um método inovador para a análise da migração – chamado por alguns autores de sociologia da emigração-imigração –, que coloca a necessidade de se considerar a relação dialética estabelecida entre a sociedade de emigração e aquela de imigração. O fenômeno emigração-imigração se constituiria de duas dimensões indissociáveis, nas quais atuariam as relações de dominação (entre classes e entre países). Dessa indissociabilidade derivam diversas constatações para a análise do fenômeno migratório; a dupla ausência, que serviu de título à mais conhecida obra do autor, La double absence. Des illusions de l'émigré aux souffrances de l'immigré (1999) é uma delas. Além disso, Sayad identifica os mecanismos que forçam o migrante a deixar sua terra, para lançá-lo, na sociedade de destino, em uma condição existencial paradoxal. A decisão de migrar terá para ele o peso do “pecado da ausência” e da ilusão movida por mentiras e falsas representações produzidas pelos Estados, pelas sociedades de origem e destino e por si mesmo. Ele sonhará continuamente com um retorno que de fato não deseja, nem tem condição de realizar. Apesar de sua crítica aparentemente colocar o imigrante aprisionado em diferentes relações de dominação, para Sayad “existir é existir politicamente”. Essa dimensão política de estar no mundo e disputar espaços é também a dimensão existencial do ser imigrante.

Como citar este verbete:

VILLEN, Patrícia & DIAS, Gustavo Dias. 2021. "Migração - Abdelmalek Sayad". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/migracao-abdelmalek-sayad

ISSN: 2676-038X (online)

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bibliografia

BOURDIEU, Pierre & SAYAD, Abdelmalek, Le déracinement; la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie. Les Éditions de Minuit, 1964 (Trad. Arg. Ángel Abad & Luciano Padilla López. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2017)

DIAS, Gustavo; BOGUS, Lúcia; PEREIRA, José Carlos & BAPTISTA, Dulce (orgs), A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad, São Paulo, EDUC – Editora da PUC/SP, 2020

SAYAD, Abdelmalek & NEIBURG, Federico, “Colonialismo e migrações - entrevista a Abdelmalek Sayad”, Mana: Estudos de Antropologia Social, 1996, p. 155-170

SAYAD, Abdelmalek. L’immigration ou les paradoxes de l’altérité. De Boeck Wesmael S.A., 1991 (Trad. Bras. Cristina Murachco. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998)

SAYAD, Abdelmalek, La double absence. Des illusions de l'émigré aux souffrances de l'immigré, Paris, Seuil, 1999

SAYAD, Abdelmalek, “O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante” Travessia: revista do migrante (especial), 2000. 7-32

YACINE, Tassadit, JAMMES, Yves & DE MONTLIBERT, Christian (orgs), Abdelmalek Sayad, la découverte de la sociologie en temps de guerre, Nantes, Éditions Cécile Defaut, 2013