The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins [O cogumelo no fim do mundo: sobre as possibilidades de vida nas ruínas do capitalismo] é a terceira monografia da antropóloga norte-americana Anna Lowenhaupt Tsing (1952-). Editado originalmente em 2015, o livro é resultado da pesquisa de campo realizada pela autora entre 2004 e 2011, durante as temporadas de coleta do cogumelo matsutake nos Estados Unidos, Japão, Canadá, China e Finlândia. A obra faz parte de um projeto maior, o Matsutake Worlds Research Group, site concebido como uma “floresta camponesa”, paisagem nas qual os humanos têm um papel ativo em sua criação, da mesma maneira que os seres não humanos. Exemplo dessas paisagens são as florestas satoyamas no Japão, frutos de perturbações resultantes do agenciamento entre humanos, pinheiros e matsutakes (Tricholoma matsutake). Ao emular essas florestas, o projeto busca permitir a emergência de produtos não intencionais, abrindo caminhos para novas pesquisas, sem objetivos pré-determinados.
A ideia de perturbação como condição para a criação das paisagens (e da vida) é central para o argumento do livro. A noção faz a conexão entre ambiente e economia, temas que organizam a obra, pois os matsutakes vivem em simbiose com certas espécies de árvores que crescem nos solos empobrecidos e nas clareiras das paisagens perturbadas pelos homens, em função de cortes e derrubadas controladas – como as satoyamas e as ruínas de plantations de florestas industriais. Além disso, esses locais permitem a sobrevivência de grupos marginalizados, por exemplo, imigrantes asiáticos nos Estados Unidos, que obtêm seu sustento da coleta e venda dos cogumelos para o mercado internacional.
Apresentado em uma forma que emula o mundo fragmentado e entrelaçado descrito, o livro é dividido em quatro partes, compostas por vinte capítulos curtos, interrompidos por interlúdios. Trata-se de uma montagem aberta, cuja leitura pode ser iniciada por qualquer um dos capítulos, e no interior da qual as imagens estão em diálogo com os relatos. Para contar estórias de paisagens, Tsing propõe uma metodologia experimental, denominada de “a arte de perceber o mundo” (arts of noticing), que visa desestabilizar as fronteiras entre as ciências naturais e sociais, e combinar técnicas da etnografia e da história ambiental no estudo de composições de paisagens e de espécies em interações. Essa abordagem permitiu que ela expandisse o alcance dos chamados estudos multiespécies e projetasse uma etnografia do capitalismo contemporâneo a partir das relações entre projetos de “criação de mundo” (world-making). Sua etnografia não se resume ao exame da relação entre humanos e cogumelos, mas se debruça sobre uma miríade de agentes animados e seus entrelaçamentos multiespecíficos, que permite acompanhar enredos de criação de mundos, nos quais se combinam também abandono de florestas, ausência de empregos, industrialização etc.
A primeira metade do livro apresenta a “arte de perceber o mundo” em contraposição a certa narrativa ocidental do progresso e à noção de indivíduo autocontido que remonta à biologia evolutiva. A partir da sua experiência com os fungos – especialmente os cogumelos matsutakes, que formam relações micorrízicas com as raízes das árvores, nas quais um não sobrevive sem o outro – Tsing elabora uma crítica ao pensamento evolucionista, pensando a evolução como coevolução, em diálogo com Scott Gilbert (1949-) e Lynn Margulis (1938-2011): as relações interespecíficas são fundamentais para o co-desenvolvimento dos organismos e dependem da contingência dos encontros. É a partir das colaborações multiespécies que emergem modos de vida diversos, condição para a habitabilidade e a sobrevivência nas ruínas do Antropoceno, época marcada pela transformação da espécie humana em agente geológico de mudanças globais.
No entanto, Tsing critica o conceito de Antropoceno e defende que essas transformações globais não são resultado da biologia mas do advento do capitalismo moderno. A partir do conceito de dádiva, a autora propõe expandir a noção de alienação de Karl Marx (1818-1883), para incluir nela processos de remoção de pessoas e coisas de suas relações emaranhadas, e a sua consequente transformação em ativos móveis ou unidades intercambiáveis – condição sempre instável. O matsutake, por exemplo, é uma mercadoria que começa sua trajetória como dádiva, como um troféu dos coletores, e termina como dádiva no Japão, onde é mobilizada para fortalecer laços pessoais. Portanto, é apenas por algumas horas, enquanto são inventariados e transportados, que os matsutakes figuram como mercadoria alienada, passível de acumulação.
O livro é resultado do diálogo de Tsing com os estudos feministas da ciência, particularmente com os de Donna Haraway (1944-); com a antropologia do capitalismo proposta pelas feministas Lisa Rofel (1953-) e Sylvia Yanagisako (1945-); com diversos trabalhos de ecologia e história ambiental; com a teoria-ator-rede (ANT) de Bruno Latour (1947-); e, de forma crítica, com o multinaturalismo de Eduardo Viveiros de Castro (1951-). Os Prêmios Gregory Bateson e Victor Turner, recebidos em 2016, são mais um índice do reconhecimento da obra por seus pares.
Como citar este verbete:
MOREIRA, André Guilherme. “O cogumelo no fim do mundo: sobre as possibilidades de vida nas ruínas do capitalismo”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/o-cogumelo-no-fim-do-mundo
ISSN: 2676-038X (online)
André Guilherme Moreira
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