obra
Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno

Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno (2019) é uma coletânea de dez artigos da antropóloga norte-americana Anna Lowenhaupt Tsing (1952-), publicados na segunda década do século XXI em revistas acadêmicas ou como capítulos de livros. O conjunto heterogêneo de artigos reúne contribuições de Tsing à antropologia contemporânea, especialmente no que diz respeito às práticas etnográficas, às metodologias de pesquisa e aos conceitos que atravessam seu trabalho, tais como paisagem, ruínas, escalabilidade, assembleia - no sentido de assemblage, associada à ideia de agencement do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) - e “feralidade”, isto é, o efeito das reações não projetadas de não humanos nas infraestruturas humanas. Segundo a autora, o objetivo do livro é inspirar colegas cientistas a “perceber o mundo” a partir da transposição de fronteiras entre as chamadas ciências naturais e sociais, em favor da produção de descrições críticas.

A obra é dividida em três seções. A primeira é resultado da pesquisa da antropóloga sobre os cogumelos matsutakes (Tricholoma matsutake), muito apreciados no Japão e com altos valores comerciais pelo fato de serem raros e aromáticos. Os artigos que compõem essa seção dialogam diretamente com a mais recente monografia etnográfica da autora, The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins (2015), obra que trata das cadeias globais de matsutakes e que recebeu, em 2016, os prêmios Gregory Bateson e Victor Turner em “Escrita Etnográfica”. A segunda seção apresenta as metodologias e os conceitos pelos quais Tsing propõe uma antropologia da habitabilidade mais que humana; a terceira, por sua vez, conecta discussões relativas ao Antropoceno à etnografia multiespécie proposta pela autora, na qual defende que a antropologia deve levar a sério as relações que os não humanos estabelecem entre si, para além das relações com os próprios humanos.

© Letha Wilson, "Kauai Green Concrete Bend", 2015. Impressões cromogênicas, concreto, transf. emulsão, moldura de alumínio. 153,67 x 115,57 x 5,08 cm. Reprodução autorizada pela artista.

Em diálogo com as artes e a biologia, em especial com as teorias ecológicas e do desenvolvimento dos biólogos Scott F. Gilbert (1949-) e John Odling-Smee, entre outras, Tsing propõe uma nova abordagem metodológica para a antropologia: a arte de perceber o mundo (arts of noticing). Ao contrário da observação antropológica comumente praticada, essa forma de percepção do mundo permite tomar de empréstimo técnicas de outros campos disciplinares, a exemplo da observação biológica de socialidades não humanas e de formas descritivas artísticas, como o desenho e a narração polifônica. Para Tsing, são esses cruzamentos que possibilitam o acesso a outras conexões e compreensões de mundo, antes fora do alcance das etnografias. “Percepção do mundo” é, então, o método utilizado pela antropóloga para descrever criticamente as paisagens como pontos de encontros multiespécies, isto é, como aquilo que emerge na e da relação de atos e agências humanas e não humanas. Segundo a autora, esses entrelaçamentos multiespecíficos podem representar um modo de encarar e resistir às mudanças climáticas e a outras tantas perturbações prejudiciais causadas pelo Homem (Homem com H maiúsculo aparece como expressão da herança iluminista, marcada pelo desejo de domínio da Natureza, também com N maiúsculo, por meio da racionalidade). Tsing defende a importância da etnografia e da descrição crítica para estudar as relações sociais dos não humanos, o que possibilita aprender sobre outras espécies, sem as quais a sobrevivência dos humanos não seria possível. Para ela, contar essas histórias seria uma forma de dar vida às paisagens e permitir a sobrevivência nas ruínas do Antropoceno – a nova e atual época geológica da Terra, cujo principal traço é a desproporcional interferência humana capitalista no meio-ambiente.

Inspirada pelas contribuições de Tim Ingold (1948-) e Marilyn Strathern (1941-), a proposta de etnografia multiespecífica de Tsing dialoga com a teoria ator-rede proposta por Bruno Latour (1947-), com a das espécies companheiras de Donna Haraway (1944-), com a antropologia para além dos humanos de Eduardo Kohn (1968-) e com o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (1951-) e de Tânia Stolze Lima (ainda que Tsing não debata diretamente com a autora). Movida pelo desejo de descrever as paisagens e suas ecologias de maneira cada vez menos homogênea, simplificadora e antropocêntrica, Anna Tsing oferece novos contornos e possibilidades aos estudos antropológicos que envolvem não humanos. No Brasil, a proposta repercute em publicações como Vozes Vegetais (2020).

Como citar este verbete:
MOREIRA, André Guilherme, LAURINO, Bianca; SCARTEZINI, Tainá. “Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/viver-nas-ruinas-paisagens-multiespecies-no-antropoceno

ISSN: 2676-038X (online)

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V
data de publicação
24/07/2021
autoria

André Guilherme Moreira, Bianca Laurino e Tainá Scartezini

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