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Kabengele Munanga

Kabengele Munanga nasceu em 1940, em Bakwa-Kalonji, República Democrática do Congo (ex-Zaire e ex-colônia belga). Graduou-se em antropologia social e cultural pela Universidade Oficial do Congo, em 1969, tornando-se o primeiro antropólogo de seu país. Ao longo de sua trajetória, produziu mais de 150 trabalhos, entre livros, capítulos de livros e artigos. Seus principais temas de pesquisa são racismo, identidade negra, negritude, multiculturalismo, educação e relações étnico-raciais, políticas antirracistas.

Museu da Pessoa, Kabengele Munanga, 1977.

Seus estudos de pós-graduação se iniciaram na Universidade Católica de Louvain, Bélgica. No início de seu doutoramento o antropólogo dedicou-se a pesquisar as artes africanas. Entretanto, ao retornar ao seu país de origem para mais uma temporada de trabalho de campo, foi politicamente perseguido por um governo ditatorial e impossibilitado de retornar à Bélgica, sendo obrigado a interromper o doutorado. Convidado a vir para o Brasil em 1975, Munanga defendeu sua tese na Universidade de São Paulo (USP), em 1977, sob o título Os Basanga de Shaba: um grupo étnico do Zaire. Ensaio de antropologia geral. Trata-se de uma monografia clássica que aborda temas como sistema de parentesco, religião e economia. Apesar dos traços funcionalistas que evidenciam a influência de seu orientador Theodor Theuws, ex-aluno de Evans-Pritchard (1902-1973), o trabalho tem o mérito de mostrar como a situação colonial influencia o modo de vida da sociedade Basanga.

No Brasil, foi professor visitante na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, antes de ingressar na Universidade de São Paulo (1980-2012); na USP, atuou como professor do Departamento de Antropologia e dirigiu o Centro de Estudos Africanos (2006-2010). Ademais, foi diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (1983-1989) e vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea (2002-2006). Em 2023, recebeu da instituição, o título de professor emérito.

As situações de racismo e discriminação experimentadas por Munanga no Brasil marcariam definitivamente sua produção, influenciando sua decisão de estudar questões étnico-raciais no país, enfrentando discussões como negritude, mestiçagem, racismo e educação. Sobre esses temas, publicou, entre outros, Negritude: Usos e Sentidos (1998) e Rediscutindo a mestiçagem no Brasil (1999). No primeiro, o autor parte do conceito de negritude, referindo-se ao movimento literário afro-franco-caribenho da Negritude, iniciado nos anos 1930 pelos escritores e políticos Aimé Césaire (1913-2008), da Martinica, Leopold Sédar Senghor (1906-2001), do Senegal, e Léon-Gontran Damas (1912-1978), da Guiana Francesa; estes defendiam que a noção de negritude fosse mobilizada em oposição ao colonialismo e ao eurocentrismo, propondo a valorização das culturas africanas tradicionais e a afirmação da identidade negra. Para Cesáire, especialmente, a negritude repousaria no reconhecimento do ser negro e na compreensão da história e cultura africanas. Munanga recuperou essa discussão e lembrou que, para o autor martinicano, negritude relacionava-se a três categorias formadoras da personalidade cultural negra africana: identidade, fidelidade e solidariedade. Enquanto identidade dizia respeito ao orgulho de ser negro, fidelidade correspondia à ligação com a “terra-mãe” (África) e solidariedade ao sentimento que ligaria “todos os irmãos negros do mundo”.

Ao mobilizar a categoria, Munanga realiza um balanço histórico-antropológico das condições coloniais que resultaram na emergência da noção de “raça”. Como lembra o autor, os europeus tanto inventaram o racismo com o apoio de pressupostos pseudocientíficos, como produziram hierarquias sociais para desumanizar as pessoas negras e colocar a “raça branca” no topo da escala civilizatória. Aos africanos e seus descendentes (racializados e desumanizados), restaria a opção de assimilar os costumes e ideias do dominador branco, ainda que a assimilação nunca os colocasse em condições plenas de igualdade. O conceito de negritude aparece, assim, como uma ferramenta política e epistemológica que supõe um duplo movimento: recusar-se a aderir aos costumes brancos e assumir conscientemente uma postura de solidariedade com a identidade e a raça negras, ressignificando e valorizando as culturas africanas e combatendo o eurocentrismo. Apesar de a categoria raça não ter fundamento científico em seu sentido biológico, Munanga defende a utilidade sociológica do termo. Desprovido de seus traços coloniais, o conceito poderia colaborar para a valorização da identidade negra e da negritude como instrumentos de contraposição ao racismo.

Outra discussão central para Munanga diz respeito às configurações da mestiçagem no Brasil. Em Rediscutindo a mestiçagem no Brasil (1999), ele analisa como a categoria foi pensada como um elemento fulcral da identidade brasileira e utilizada para cristalizar uma suposta superioridade branca. Ao contrário de regimes onde a segregação racial era legalizada, como nos Estados Unidos e na África do Sul, a ideia de mestiçagem acabou cooperando para camuflar o racismo estrutural no Brasil. Mostra ainda que intelectuais como Silvio Romero (1851-1914) e Gilberto Freyre (1900-1987) ao tomarem a mestiçagem como traço central da identidade nacional, terminaram por nublar o racismo. Contra isso, Munanga dialoga com teóricos e ativistas do movimento negro, como Abdias Nascimento (1914-2011), e lembra que a mestiçagem brasileira resultou de processos históricos violentos que buscavam apagar os legados da população africana e seus descendentes para a formação da nação.

Munanga vem participando ativamente do debate público a respeito da identidade negra e das condições da população afrodescendente no Brasil. Tal como outros intelectuais e ativistas, tem sido um entusiasta de iniciativas como a obrigatoriedade do ensino de África e de cultura afro-brasileira em todos os níveis educacionais (Lei 10.639/2003) e das políticas de ações afirmativas; considera tais iniciativas instrumentos para a valorização da identidade negra e da diversidade racial, e de enfrentamento ao racismo. Engajada, social e politicamente, a obra de Munanga situa-se no limite entre a antropologia das populações afro-brasileiras e a educação das relações étnico-raciais e propõe diálogos fundamentais entre a antropologia, a história e a educação. Um bom exemplo de suas contribuições para a educação das relações étnico-raciais é a coletânea Superando o racismo na escola (1999). A obra sugere práticas pedagógicas para o combate ao racismo e a valorização da diversidade racial na escola, desconstruindo estereótipos sobre a população negra e valorizando as tradições afro-brasileiras.

Embora não tenha elaborado categorias analíticas inéditas para refletir sobre a realidade das populações africanas em diáspora, o autor tem resgatado, historicizado e reinterpretado categorias antropológicas como raça, negritude e identidade negra. Tais conceitos têm se mostrado ferramentas teóricas potentes para a militância antirracista, para o debate público e para a educação, e seguem fornecendo subsídios teóricos para a formação de antropólogos, historiadores e educadores.

Autor do vídeo: Bukassa Kabengele. Cerimônia de outorga do título de Professor Emérito a Kabengele Munanga pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 02/06/2023.

Como citar este verbete:
GUERREIRO, Clayton. 2023. "Kabengele Munanga". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/kabengele-munanga

ISSN: 2676-038X (online)

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M
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