autor
Katherine Dunham

Katherine Dunham (1909-2006) foi uma antropóloga, coreógrafa, dançarina e ativista social afro-estadunidense. Aluna de Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), Bronisław Malinowski (1884-1942) e Robert Redfield (1897-1958) na Universidade de Chicago, entre os anos 1920 e 1930, investigou as relações entre cultura e dança em sociedades de diáspora africana, em especial a herança de afrodescendentes em manifestações religiosas e populares no Haiti e Jamaica. Foi responsável pela criação do grupo Ballet Nègre [Balé Negro] em Chicago em 1931, composto majoritariamente por dançarinas/os negras/os. É a partir dessa experiência na dança e de seu contato com Redfield em Chicago, que desperta o interesse pelas influências e heranças africanas nas danças das Américas, passando a estabelecer relações próximas entre dança e antropologia.

Roger Wood, Katherine Dunham "Bahiana", Biblioteca Pública de Nova York, c. 1940-49. Fotografia. Jerome Robbins Dance Division.

Em 1935, contando com Melville Herskovits (1895-1963) como orientador de sua pesquisa de campo, segue para o Caribe com o objetivo de investigar a herança africana nas danças caribenhas e sua função social. Dances of Haiti (1947), uma das obras que sintetiza os resultados dessa investigação, descreve o que chamou de forma e função social da dança na sociedade haitiana, a partir de três categorias de análise: a dança sagrada (que corresponderia as danças ritualísticas de grupo e “de representação simbólica individual”, como o vodu); a secular (“danças sazonais de multidão e danças sociais de pequena reunião”, como o carnaval) e a marginal (rituais e cortejos fúnebres). Dunham entende a dança secular, em especial o carnaval, como um espaço de solidariedade e coesão social, no qual haveria uma suspensão das desigualdades existentes entre os diferentes grupos sociais na sociedade haitiana, principalmente as de classes, marcadas pela diferenciação da tonalidade da pele.

Essa viagem conheceu desdobramentos em outras publicações de Dunham e teve forte impacto no conhecimento histórico, antropológico e etnográfico da dança moderna; influências como as de Radcliffe-Brown (1881-1955) são explícitas no título de sua tese Form and function in primitive dance (1941). A antropologia da dança que ela projeta está ancorada na observação do papel do ritual da dança na formação de grupos sociais e no compartilhamento de visões de mundo. Esse campo de estudo por ela estabelecido está relacionado não só a sua vivência como pesquisadora no Caribe, mas a sua atuação como educadora e performer. Na qualidade de pesquisadora, se opõe ao uso da noção de “dança étnica” para se referir às danças de sociedades não ocidentais e não brancas; como educadora e dançarina, incorporou elementos da biguine – dança que reúne passos de ritmos africanos com dança de salão francesa, que ela observou durante sua passagem pela Martinica, entre 1935 e 1936.

Durante a estada no Haiti, a antropóloga participou de cerimonias do vodu, iniciando-se na religião. Sua experiência no vodu, como pesquisadora e praticante, contribuiu para a emergência de outra visão da relação estabelecida entre pesquisadora e interlocutoras/es de pesquisa, e para o rompimento com certa noção de objetividade. Na “Carta aberta aos teatros negros” (1979), associa sua experiência pessoal na religião à perspectiva que lança sobre esta, defendendo serem as práticas da “macumba, santeria e vodun”, “formas altamente desenvolvidas de teatro popular”; indica ainda como introduziu os passos das divindades na “Técnica Dunham”, caracterizada por explorar os movimentos de ombros, coluna e quadril.

Sua abordagem antropológica da dança foi marcada pela vivência nos meios artísticos de Chicago. Nos anos 1930, a cidade foi ponto de efervescência de movimentos de luta pelos direitos civis, além de centro literário negro. Durante esse período participou de produções teatrais e conheceu escritores afroestadunidenses como Langston Hughes (1901-1967) e Alain Locke (1885-1954), integrantes do Harlem Renaissance; assim como eles, incorporou em seus trabalhos a ideia de autorrepresentação do negro. Seu apartamento se tornaria ponto de encontro de artistas e intelectuais como o folclorista Alan Lomax (1915-2002), a antropóloga afroestadunidense Zora Neale Hurston (1891-1960), além de Radcliffe-Brown e Malinowski. Paralelamente, estabeleceria relações com líderes trabalhistas (como estivadores e trabalhadores responsáveis pelo armazenamento de mercadorias) e sindicatos, como o Sindicato Internacional  de Trabalhadoras do Vestuário Feminino, criando uma conexão entre seu trabalho artístico e as lutas sociais ao realizar apresentações de teatro e dança em espaços de militância. Defendeu ainda a necessidade de que as expressões artísticas negras, criações complexas e plurais, fossem analisadas em função de suas fontes e contextos, de modo a valorizar suas/seus artífices.

Nos anos seguintes ao seu retorno aos EUA em 1936, opta por dar centralidade a sua carreira profissional como dançarina, sem deixar de seguir pesquisando expressões artísticas e sociais da dança e de publicar obras como Touch of innocence (1959) e Island possessed (1969). O ativismo social continuou ponto central na trajetória da bailarina até seu falecimento em 2006 em Nova York.

No Brasil, Dunham é mais conhecida no campo da dança, em especial por artistas negras/os e educadores/as da área da dança como o pesquisador e professor de dança da UFBA, Fernando Ferraz, que tem textos publicados sobre a bailarina. Seu impacto no país deve-se também à coreógrafa e bailarina afro-brasileira Mercedes Baptista (1921-2014), primeira mulher negra a compor o corpo do baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro que, em 1950, foi contemplada por uma bolsa para estudar na escola de dança de Dunham em Nova York. Ela é lembrada ainda pelo episódio de racismo do qual foi vítima quando, em uma de suas apresentações no Teatro Municipal de São Paulo, em 1947, foi impedida de se hospedar no Hotel Serrador por ser negra. A comoção gerada entre intelectuais teria impulsionado o senador Afonso Arinos a apresentar o projeto de lei que transformava o racismo em crime, em 1951.

Como citar este verbete:
LOURENÇO, Vanessa Cândida. 2023. "Katherine Dunham". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/katherine-dunham

ISSN: 2676-038X (online)

Acesse aqui a versão em PDF ]

D
data de publicação
10/07/2023
autoria

Vanessa Cândida Lourenço

bibliografia

ASCHENBRENNER, Joyce, Katherine Dunham: dancing a life, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 2002

BURT, Ramsay, “Katherine Dunham e Maya Deren sobre ritual, modernidade e diáspora africana”, ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes, v. 3, n. 2, 2016, p. 44-51

DEE DAS, Joanna, Katherine Dunham: dance and the African diaspora, New York, Oxford University Press, 2017

DUNHAM, Katherine, Journey to Accompong, New York, H. Holt, 1946

DUNHAM, Katherine, Touch of innocence, New York, Harcourt, 1959

DUNHAM, Katherine, “Open letter to black theaters”, The Black Scholar, July/August 1979, 10(10), BLACK THEATRE (July/August 1979), pp. 3-6

DUNHAM, Katherine, Dances of Haiti [1947], University of California, Los Angeles, 1983

DUNHAM, Katherine, “Excerpts from the dances of Haiti: function”, Journal of Black Studies, vol. 15, no. 4, Sage Publications, Inc., 1985, p. 357–379

DUNHAM, Katherine, Equality for a lightning bug: a small collection of poems,   Authorhouse, 2004

DUNHAM, Katherine, Kaiso! Writings by and about Katherine Dunham,  Madison,  University of Wisconsin Press, 2005

DUNHAM, Katherine, Island possessed [1969], University of Chicago Press, Chicago, 2012