obra
Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande

Já em sua primeira publicação em 1937, o livro Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande ganhou lugar de destaque na obra do antropólogo britânico Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973). Fruto de vinte meses de trabalho de campo, realizado entre 1926 e 1929, junto a este povo do sul do Sudão, a monografia é vasta em contribuições tanto teóricas quanto etnográficas, resultantes de um envolvimento intenso com as ideias azande. A bruxaria, questão central do livro, longe de ser um tema concebido antes da ida a campo, se impôs como objeto de estudo por conta de sua presença constante entre os nativos e pela importância atribuída a ela, notada desde os primeiros contatos do antropólogo com a sociedade.

Nos treze capítulos e quatro apêndices que compõem a versão mais sintética do livro, lançada em 1976, Evans-Pritchard descreve a crença zande na bruxaria como um meio de explicar os infortúnios. Em uma abordagem próxima daquela posteriormente empreendida em Nuer Religion (1956), em que a noção de kwoth é o ponto de partida para interpretar a filosofia religiosa dos Nuer, o autor mostra como a bruxaria faz parte de um sistema de pensamento racional e coerente - que envolve os oráculos, a magia, a feitiçaria, os adivinhos e as drogas etc. - capaz de dar sentido não apenas a eventos físicos e objetivos, como faz a racionalidade científica ocidental, mas também aos acasos e a acontecimentos imprevisíveis. Cada parte desse sistema é utilizada para explicar e validar a outra, e as eventuais lacunas deixadas pelo fracasso de algum rito ou por inconsistências das respostas dos oráculos, por exemplo, são explicadas por uma variedade de noções místicas que são – e, segundo o autor, só poderiam ser – expressas no próprio idioma da crença. 

Richard Buchta, Contra-feiticeiro zande, fotografia, século XIX. Pitt Rivers Museum, Oxford. Wikimedia Commons. Imagem em domínio público.
Os Azande entendem a bruxaria como condição hereditária e biológica, que é disparada por um ato psíquico, por vezes involuntário, incitado por ciúme, inveja, ódio ou cobiça, e que desencadeia uma série de infortúnios a quem ela se destina. Evans-Pritchard conta que viu a luz característica da bruxaria atravessar a floresta e se instalar na residência de um homem que – não por acaso, segundo a lógica zande – faleceu pouco tempo depois. Uma vez que tais infortúnios vão das situações mais comezinhas até a morte, recorre-se cotidianamente a diversos tipos de oráculos, que tanto revelam a identidade do bruxo (o que também pode ser feito pelos adivinhos) quanto sanam dúvidas sobre assuntos impossíveis de serem revelados por inferência lógico-experimental. Principal inimiga da bruxaria, a magia combate os males por ela causados, curando doenças, controlando a agricultura e a caça, além de ser responsável  pela vingança contra os bruxos e feiticeiros identificados pelos oráculos. A magia é realizada de maneira consciente, pois depende da manipulação deliberada de drogas específicas para cada finalidade e da realização de encantamentos, o que nitidamente a diferencia da bruxaria. Distingue-se ainda a “boa magia”, aquela socialmente autorizada, da feitiçaria, maligna, imoral e antissocial, destinada a fazer mal deliberadamente a outrem, seja a seus negócios ou ao corpo do sujeito. Os ritos mágicos são raros e secretos e, embora sejam mais comuns entre os homens mais velhos, todo zande, diz o autor, é até certo ponto um mágico, já que tem contato com magia e com drogas em algum momento de sua vida.

Nesta obra, Evans-Pritchard dialoga com as principais teorias então correntes sobre a razão humana. Ao identificar a racionalidade que subjaz à bruxaria zande, a monografia avança em relação à teoria da mentalidade primitiva de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) e à noção de representações coletivas de Émile Durkheim (1858-1917), que lhe serviram de ponto de partida. A obra suscitou também uma pluralidade de linhas de descendência e abriu caminhos para o posterior desenvolvimento de subáreas no interior da filosofia, da psicologia, dos estudos da religião e da sociologia do conhecimento; serviu ainda de inspiração para os estudos de micropolítica, na medida em que mostra a dimensão sociológica, os conflitos e as relações de poder produzidos pelas acusações de bruxaria e feitiçaria, e para os estudos da transformação social em contextos coloniais e pós-coloniais, ao apontar alguns dos efeitos da administração anglo-egípcia na organização social e nas crenças dos Azande. A preocupação do autor em nuançar, e mesmo em colocar em questão, as diferenças entre os chamados povos tradicionais e os ocidentais-modernos, entre “nós” e “eles”, tem sido observada por autores das safras mais recentes da antropologia, que localizam neste estudo os gérmens do que veio a ser chamado posteriormente de antropologia simétrica.

Como citar este verbete:
MACIEL, Diogo Barbosa & CORTEZ, Renata Harumi. 2016. "Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/bruxaria-oraculos-e-magia-entre-os-azande

ISSN: 2676-038X (online)

[ Acesse aqui a versão em PDF ]

B
data de publicação
02/05/2016
autoria

Diogo Barbosa Maciel e Renata Harumi Cortez

bibliografia

BURTON, John W., “The ghost of Malinowski in the southern Sudan: Evans-Pritchard and ethnographic fieldwork”, Proceedings of the American Philosophical Society, v. 127, n. 4, 1983, p. 278-289


DOUGLAS, Mary, “Introduction: thirty years after Witchcraft, Oracles and Magic” In:  Witchcraft confessions and accusations, London, Tavistock, 1970


EVANS-PRITCHARD, E. E., “The Dance”, Africa: Journal of the International African Institute, v.1, n. 4, 1928, p. 446-462


EVANS-PRITCHARD, E.E., “Witchcraft”, Africa: Journal of the International African Institute, v.1, n. 4, 1929, p. 417-422


EVANS-PRITCHARD, E.E.,Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande, Oxford, Clarendon Press, 1937 (Trad. Bras. Eduardo Viveiros de Castro, Rio de Janeiro, Zahar editores, 2005)


EVANS-PRITCHARD, E.E., Nuer religion, Oxford, Clarendon Press, 1956


EVANS-PRITCHARD, E.E., “Sanza: a characteristic feature of Zande language and thought” In: Essays in social anthropology, London, Faber and Faber, 1962


EVANS-PRITCHARD, E.E., The Azande: history and political institutions, Oxford, Clarendon Press, 1971


GIUMBELLI, Emerson, “Os Azande e nós: experimento de antropologia simétrica”,  Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, 2006, p. 261-297


JAMES, Wendy, “The anthropologist as reluctant imperialist” In: Talal Asad, Anthropology and the colonial encounter, London, Ithaca Press, 1973, p. 41-69


ROSA, Frederico Delgado, “O fantasma de Evans-Pritchard: diálogos da antropologia com a sua história”, Lisboa, Etnográfica, v.15, n. 2, 2011, p. 337-360


TRIPLETT, Timm, “Azande Logic versus Western Logic?”, The British Journal for the Philosophy of Science, v. 39, n. 3, 1988, p. 361-366