obra
Manifesto ciborgue

O Manifesto ciborgue -­ ciência, tecnologia e feminismo­ socialista no final do século XX (1985) é um ensaio escrito pela bióloga e filósofa norte-americana Donna J. Haraway (1944- ). Com título que alude ao Manifesto comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels, o Manifesto Ciborgue integra um conjunto de posicionamentos públicos do feminismo socialista estadunidense acerca dos rumos dos movimentos sociais de esquerda desse país na década de 1980. Trata-se de uma obra central para a compreensão da crítica feminista da ciência proposta pela autora, que reverbera em suas obras posteriores, entre as quais Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science (1990); Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature (1991); The companion species manifesto: dogs, people, and significant otherness (2003) e When species meet (2008).

Em diálogos com o feminismo norte-americano, em especial com o feminismo negro e latino, com a economia, com obras literárias e com a biologia – área na qual a autora é formada, Haraway produz um texto polêmico ao propor uma postura feminista apta a refletir sobre a influência da ciência e da tecnologia do final do século XX sobre as relações sociais. Para a autora, tanto os feminismos socialistas e marxistas quanto os feminismos radicais conceberam a categoria mulher a partir do que seria considerado comum a todas elas, por meio da “política da identidade”. Haraway sugere uma ruptura com tal política para dar lugar a uma coalizão capaz de considerar as diferenças e as afinidades entre mulheres, denominada por ela “política de afinidades”. O ciborgue, criatura formada por fusões entre máquina e organismo, mistura de realidade social e ficção, não constituindo um corpo sólido com componentes definidos, seria uma metáfora dessa nova política em um mundo marcado de forma crescente pelo binômio ciência e tecnologia, no qual as fronteiras entre humano e animal, organismo e máquina, e entre físico e não físico mostram-se fluidas.

Giovanni da Monte Cremasco, à maneira de Giuseppe Arcimboldo, "Humani Victus Instrumenta", c. 1569. Gravura. Metropolitan Museum of Art, Nova York. CC0 1.0. Imagem em domínio público.

Essa confusão de fronteiras é necessária para que a autora repense as questões de gênero, de sexualidade, raça e tecnociência, uma vez que a passagem das tradicionais dominações hierárquicas para um sistema de dominação baseado na informática global coloca em cena novas formas de poder e, com elas, novas configurações e significados de sujeitos. Haraway mostra como o desenvolvimento científico e tecnológico está presente no mundo do trabalho, na alimentação, na produção do conhecimento e nas mais diversas dimensões da vida. Nesse novo enquadramento histórico, seriam desfeitos pela tecnologia alguns pressupostos científicos e políticos que por muito tempo nortearam o pensamento ocidental e serviram à dominação das mulheres, das “pessoas de cor” (“people of color”, no original) dos trabalhadores e animais; por exemplo, os dualismos mente/corpo, natureza/cultura, macho/fêmea e organismo/máquina. Essas dicotomias anteriormente rígidas seriam então desmanchadas, dando espaço a conceitos maleáveis e passíveis de reconstruções, produzindo alternativas às tradicionais concepções de corpos e modos de vida a partir da apreensão da tecnologia no cotidiano.  Esse processo de remodelamento de corpos e de relações mostra como os corpos são construídos e podem ser desmontados, colocando à prova sua suposta naturalidade e revelando suas possibilidades políticas. Daí a necessidade das mulheres apreenderem e se apropriarem da linguagem da tecnociência, tendo como inspiração a figura do ciborgue, de modo a contestar esses dualismos clássicos e alterar as relações de classe, raça e gênero, em uma tentativa de superação das dominações e da construção de um mundo a favor das diversidades.

Ao analisar as relações dicotômicas entre natureza e tecnologia, e o lugar da mulher no interior desse cenário, a política ciborgue proposta no manifesto de Haraway pretende ampliar o conceito de biopolítica de Michel Foucault (1926-1984) pela elucidação das complexas conexões entre cibernética e corpos e por meio da visibilidade conferida a inúmeros arranjos possíveis de subjetividade e de organismos. Tal contribuição torna o Manifesto ciborgue fundamental para o pensamento pós-feminista, ao lado das obras de Judith Butler (1990), Teresa de Laurentis (1997), Judith Halberstam (1998), Audre Lorde (1984) Gloria Anzaldúa (1987) e Marie-Hélène Bourcier (2001). O ciborgue de Haraway contribuiu também para a problematização contemporânea das questões de gênero e sexualidade propostas pelo movimento queer, reverberando naquela que seria uma das obras mais emblemáticas acerca do tema, o Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual (2000) de Paul Beatriz Preciado (1970- ). Desde a concepção de ciborgue cunhada por Haraway em seu Manifesto, a preocupação política com a ciência e tecnologia é reconfigurada ao longo de sua obra, alimentando diálogos constantes com os debates da antropologia da ciência que mobilizam, por exemplo, Bruno Latour (1947-2022) e Marilyn Strathern (1941- ).

Como citar este verbete:
FONTGALAND, Arthur & CORTEZ, Renata. 2015. "Manifesto ciborgue". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/manifesto-ciborgue>

ISSN: 2676-038X (online)

[ Acesse aqui a versão em PDF ]

M
bibliografia

ANZALDÚA, Gloria, Borderlands/La Frontera: the new mestiza, San Francisco, Spinster; Aunt Lutte, 1987

BUTLER, Judith, Gender trouble: feminism and the subversion of identity, London & New York, Routledge, 1999

FOUCAULT, Michel, Histoire de la sexualité. Tome I. Paris, Gallimard, 1976 (Trad. bras. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1998)

GORDON, Richard, “The computerization of daily life, the sexual division of labor, and the homework economy”, Silicon Valley Workshop Conference, University of California at Santa Cruz, 1983

GROSSMAN, Rachel, “Women’s place in the integrated circuit”, Radical America, v. 14, n. 1, 1980, p. 29-50

HALBERSTAM, Judith, Female masculinity. Durham, Duke University Press, 1998

HARAWAY, Donna J., “A Cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century” In: Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature, New York, Routledge, 1991 (Trad. Bras. Tomaz Tadeu. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari & TADEU, Tomaz, Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano, Belo Horizonte, Autêntica, 2009, 2a ed.)

HARAWAY, Donna J., Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science, New York and London, Routledge, 1990

HARAWAY, Donna J., Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature, New York, Routledge, 1991

HARAWAY, Donna J., The companion species manifesto: dogs, people, and significant otherness, Chicago, Prickly Paradigm Press, 2003 (Trad. Bras. Pê Moreira. Rio de Janeiro, Bazar do tempo, 2021)

HARAWAY, Donna J., When species meet, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2008

HUTCHINSON, Evelyn, The kindly fruits of the earth: recollections of an embryo ecologist, New Haven, CT, Yale University Press, 1979

KING, Katie, “The pleasure of repetition and the limits of identification in feminist science fiction: reimaginations of the body after the cyborg”, trabalho apresentado em California American Studies Association, Pomona, 1984

KING, Katie, “The situation of lesbianism as feminism’s magical sign: contests for meaning and the U.S. women’s movement, 1968-72”, Communication. v. 9, n. 1, 1986, p. 65-92

LATOUR, Bruno, Nous n'avons jamais été modernes. Essai d'anthropologie symétrique. Paris, La Découverte, 1991. (Trad. Bras. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994)

LATOUR, Bruno, Pandora’s Hope: Essays on the Reality of Science Studies. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999 (Trad. Bras. Gilson César C. de Sousa. Bauru, EDUSC, 1999)

LAURETIS, Teresa de, “Feminist studies/crítical studies: issues, terms, and contexts” In: Feminist Studies/Critical Studies,  Bloomington, Indiana University Press, 1986

LORDE, Audre, Sister outsider,  Trumansberg (NY), Crossing, 1984

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei, 1848 (Trad. Bras. Marcus Vinicius Mazzari.  Estudos avançados, v.12, n.34. São Paulo, set-dez, 1998)

MORAGA, Cherríe, Loving in the war years, South End Press, 1983

MORAGA, Cherríe & ANZALDÚA, Gloria (orgs), This bridge called my back: writings by radical women of color, Watertown, Persephone, 1981

PRECIADO, Paul Beatriz,  Manifeste contra-sexuel. Paris, Ballard, 2000 (Trad. Bras. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo, n-1 Edições, 2014)

SANDOVAL, Chela, Yours in struggle: women respond to racism, a report on the National Women’s Studies Association, Oakland, CA, Center for Third World Organizing, [s. d.]

SANDOVAL, Chela,  “New sciences: cyborg feminism and the methodology of the oppressed” In: Chris Hables Gray (ed.),The cyborg handbook, New York, Routledge, 1995

STRATHERN, Marilyn, Reproducing the future: essays on anthropology, kinship and the new reproductive technologies, Manchester, Manchester University Press, 1992