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As técnicas do corpo

Em As técnicas do corpo (1934), comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia, o antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) trata de um domínio até então nublado pela noção tradicional de tecnologia, entendida como instrumento envolvido no ato de manipulação. Às técnicas dos instrumentos, Mauss opõe um conjunto de técnicas do corpo, ao qual confere um papel preliminar: o corpo é o primeiro instrumento do homem, e ainda, o primeiro objeto e meio técnico do homem. Atribuindo à noção de técnica o que chama de ato tradicional eficaz, Mauss afirma não existir técnica nem transmissão se não houver tradição. Técnicas do corpo referem-se então aos modos pelos quais as pessoas sabem servir-se de seus corpos de maneira tradicional, o que varia de uma sociedade a outra. 

Banho, Shinichi Suzuki, Japão, c.1880. Fotografia, impressão colorida manualmente. The J. Paul Getty Museum, Los Angeles. Getty Open Content. Imagem em domínio público.

Ao analista, segundo ele, caberia partir do estudo e descrição detalhada das técnicas do corpo em diferentes contextos, de modo a alcançar o conceito abstrato e constituir uma teoria da técnica do corpo. De modo a localizar o caráter específico de cada técnica corporal, ele parte da observação das mudanças presenciadas por sua geração, por exemplo, nas técnicas de nado, e nos seus modos de ensino e aprendizagem: enquanto em um momento aprendia-se, primeiro, a nadar e depois a mergulhar, posteriormente ensina-se, antes, a mergulhar e a familiarizar-se com a água para, depois disso, nadar. Este e outros exemplos amparam a afirmação feita pelo autor de que cada sociedade possui hábitos próprios, que são de natureza social, variando não apenas de um indivíduo a outro, mas com as formas de educação e convenções sociais. Neste sentido Mauss prefere o termo habitus (em latim) a hábito, pois ele expressaria melhor a “exis” [hexis], denotando o que é adquirido e sublinhando não existir maneira natural nos atos corporais de um adulto. Ao afirmar a predominância da educação sobre os atos corporais, o autor defende que para analisar tais atos é preciso levar em conta os pontos de vista biológicos, sociológicos e psicológicos, de modo a realizar o estudo do que chama de “homem total”.

Mauss sugere quatro princípios para classificar o conjunto das técnicas do corpo:  a divisão das técnicas entre os sexos; sua variação de acordo com as idades; também em relação aos rendimentos e ordem de eficácia; e ainda em termos de sua transmissão, levando em consideração as tradições que os impõem. Outra forma de classificação sugerida é a enumeração das técnicas em função do acompanhamento do trajeto de um indivíduo no decorrer da sua vida, observando por exemplo: (1) técnicas do nascimento e da obstetrícia: formas de parto e reconhecimento da criança; (2) técnicas da infância: modos de carregar o bebê, de mamar e desmamar; (3) técnicas da adolescência: contextos de iniciação dos jovens; (4) técnicas da idade adulta: modos de dormir e de repouso; técnicas de atividade e movimento: dança, corrida, salto, escalada, descida, nado; técnicas de cuidados do corpo: esfregar, lavar, ensaboar; técnicas de consumo: modos de comer e beber; técnicas da reprodução: posições sexuais; e técnicas de medicação. 

Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em sua Introdução à obra de Marcel Mauss (1950), aponta o caráter programático da análise de maussiana sobre as técnicas do corpo, que reverbera em toda a antropologia posterior. Ao contrário do que sugeriam certas concepções racistas que viam no homem o produto do seu corpo, o inventário e a descrição das técnicas corporais propostos por Mauss, destaca Lévi-Strauss, demonstram que o homem, sempre e em toda parte, soube fazer de seu corpo o resultado de suas técnicas e de suas representações. Destacando fenômenos que colocam em relação aspectos fisiológicos e sociais, e mostrando o rendimento teórico de uma análise que sublinha as relações entre os indivíduos e os grupos sociais, Mauss aproxima ainda a etnologia da psicanálise, estendendo a influência de suas teses para outras disciplinas. Por fazer do corpo um objeto de reflexão da análise social e cultural, o ensaio tornou-se uma referência incontornável para os debates posteriores sobre o tema, nos mais diversos domínios.

Como citar este verbete:
HAIBARA, Alice & SANTOS, Valéria Oliveira. 2016. "As técnicas do corpo". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
02/05/2016
autoria

Alice Haibara e Valéria Oliveira Santos

bibliografia

LÉVI-STRAUSS, Claude,  “Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss” In: Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, Les Presses universitaires de France, Quatrième édition, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003)


MAUSS, Marcel, “Les techniques du corps”,  Journal de Psychologie, XXXII, ne, 3-4, 15 mars - 15 avril 1936. (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003)