A antropologia linguística é uma área interdisciplinar, cujo nascimento remonta ao trabalho do antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, Franz Boas (1858-1942), que se volta ao entendimento da língua em contextos sociais e culturais específicos, buscando analisar as relações entre elementos linguísticos, práticas culturais e estruturas sociais. Para tanto, a antropologia linguística vale-se fundamentalmente do método etnográfico. Com relação às denominações variadas (e às vezes controversas) dessa área, nota-se que a partir da década de 1950, o termo “linguística antropológica” passa a ser empregado como sinônimo de “antropologia linguística”, diferindo conforme a formação do pesquisador. Em algumas universidades dos Estados Unidos, a área é conhecida também como semiótica, enfatizando seu interesse na compreensão do sentido. Os principais desenvolvimentos do campo se deram em universidades norte-americanas, principalmente a partir da década de 1930, com a hipótese do relativismo linguístico, esboçada por Edward Sapir (1884-1939), na Universidade de Yale, e cujo principal expoente foi Benjamin Whorf (1897-1941).
Para Boas, a disciplina compreendia quatro áreas: antropologia física, antropologia cultural, arqueologia e linguística. Esta última daria origem à antropologia linguística, em um momento em que a linguística passa a configurar uma disciplina autônoma, com interesses e métodos próprios. Desde os seus primeiros trabalhos de campo entre os Inuit da ilha de Baffin, no Canadá, o antropólogo defende que as características das línguas estão refletidas nas visões de mundo e costumes de seus falantes. Em um contexto de preocupação com o desaparecimento de culturas tradicionais, o trabalho etnográfico – incluído o conhecimento das línguas – era, para ele, um instrumento central para a descrição e compreensão dos povos indígenas. Em sua introdução ao Handbook of American Indian Languages (1911), Boas nota que as línguas agrupam diferentes elementos sob uma mesma categoria para referir-se a uma gama de experiências e ideias variadas; exemplo conhecido é o uso do termo “neve”, utilizado indistintamente no português para se referir a diversos estados da neve que são linguisticamente diferenciados na língua inuit. Ele mostra, assim, como a língua se relaciona ao processo de conceitualização do mundo: as diferenças linguísticas estão associadas a formas diversas de conceber a realidade – ainda que rejeitasse a ideia de que a língua pudesse ter um “efeito sistemático” sobre o pensamento e a cultura, cerne da hipótese do relativismo linguístico.
As ideias de Boas seriam o gérmen deste que viria a ser um dos principais debates da antropologia linguística, também conhecido como hipótese Sapir-Whorf. Esta hipótese defende que a língua, sua estrutura gramatical e vocabulário, influencia a maneira como os falantes percebem e pensam o mundo. Aluno de Boas, Edward Sapir propõe que as línguas influenciam o pensamento conceitual, com base em seus trabalhos com diversos povos na costa oeste dos Estados Unidos e do Canadá (entre os Chinook, Takelma, Shasta Costa, Yana e Noodka, por exemplo). Na década de 1930, Benjamin Whorf, apoiado em seu trabalho entre os Hopi e entre povos da atual região entre México e Estados Unidos, sugere mudanças à teoria sapiriana. Para ele, as categorias linguísticas (lexicais e sintáticas) criam padrões habituais no pensamento, com amplas implicações sobre a cultura dos falantes; isto é, ao condicionar uma espécie de pensamento habitual, a língua influiria sobre a cultura.
A hipótese Sapir-Whorf foi alvo de críticas de autores como Noam Chomsky (1928-) e Steven Pinker (1954-), baseadas sobretudo em questões metodológicas e na falta de evidências empíricas. Além disso, a hipótese foi interpretada como a defesa de que a língua determina a forma de pensar do falante, que não conseguirá, nem mesmo racionalmente, se livrar das restrições impostas por seu idioma. Essa visão ficou conhecida por “determinismo linguístico” e um dos principais trabalhos a desafiá-la foi o artigo “Basic Color Terms: Their Universality and Evolution” publicado em 1969 por Brent Berlin (1936-) e Paul Kay (1934-) sugerindo que, apesar das variações linguísticas, há padrões comuns, e possivelmente universais, na forma como as cores são nomeadas e percebidas.
A partir da publicação de Women, fire, and dangerous things (1987), do linguista George Lakoff (1941-) somada aos avanços da psicologia experimental e da linguística cognitiva, o relativismo linguístico foi reexaminado à luz de uma interpretação mais moderada, que passou a admitir uma possível influência da língua sobre aspectos do pensamento e da percepção, ao invés de pressupor uma relação determinística entre língua e pensamento. A partir desse momento, tal hipótese passou efetivamente a ser reconhecida como “relativismo linguístico”. Trabalhos experimentais como os do linguista e psicólogo John Lucy (1949-) com os Maia da região de Yucatán, no México, foram cruciais para a revisão de tal hipótese, que ainda é objeto de pesquisas na linguística, antropologia e psicologia.
Posteriormente, os estudos sobre artes verbais e performances ritualísticas passaram a figurar entre os interesses dos antropólogos linguistas, nos trabalhos de Dell Hymes (1927-2009) por exemplo, cujas contribuições foram centrais para a distinção entre a antropologia linguística e a sociolinguística. Embora ambas as disciplinas tenham se voltado ao estudo dos usos linguísticos, distinguiram-se pelos métodos utilizados: a sociolinguística, principalmente em seus primeiros desenvolvimentos, amparava-se em dados quantitativos e relacionava-os a macrocategorias sociais predeterminadas, enquanto os antropólogos linguistas realizavam etnografias da fala a partir das interações sociais. Nesse contexto, as obras de Elinor Ochs (1942-), Charles Goodwin (1943-2018), Michael Silverstein (1945-2020), Alessandro Duranti (1950-) e Paul Kockelman (1970-) adquirem grande importância para a antropologia linguística.
Os estudos sobre as interações ganharam espaço nas últimas décadas. Alessandro Duranti, por exemplo, dedica-se a compreender o sentido da fala em suas relações com os contextos específicos em que emerge, e que abrangem: características sociais dos participantes envolvidos na interação (como classe, etnicidade, gênero, raça); hábitos culturais; recursos semióticos não linguísticos (como os gestos, o olhar, a postura etc.); objetos disponíveis e circunstâncias espaciais e temporais em que a interação ocorre. Nessa linha, emergem como conceitos importantes os de “performance”, “indexicalidade” e “participação”. Em Linguistic anthropology: a reader (2001), Duranti define “performance” como o uso da língua em situações cotidianas ou ritualísticas, espacial e temporalmente marcadas, envolvendo pessoas específicas e os recursos semióticos que constituem a interação; estabelece assim uma diferença em relação à análise descontextualizada de estruturas gramaticais. Para o estudo da língua em situações de performances, a “indexicalidade” tem relevância pois chama a atenção para como os elementos linguísticos indicam características socioculturais específicas. No Brasil, por exemplo, a falta de concordância nominal (como em “os menino”) indexa – isto é, aponta – características do falante. Para os estudos da antropologia linguística, todos os elementos linguísticos apontam sempre fatos não linguísticos, que são cruciais para a compreensão de significados das interações em que surgem.
No Brasil, projetos e grupos na área da antropologia linguística voltam-se ao estudo das diversas linguagens e línguas encontradas no país, assim como aspectos culturais, históricos e formas de arte verbal, como encantamentos, benzimentos, cantos. Desde o final dos anos 1970, na Universidade Estadual de Campinas, o antropólogo Peter Fry (1941-), o linguista Carlos Vogt (1943-), ao lado de outros pesquisadores, trabalharam com linguagens afro-brasileiras no quilombo Cafundó no interior de São Paulo. O Laboratório de Antropologia Urbana (LAB NAU) da USP realiza, desde 2002, estudos com a comunidade surda, suas linguagens, cultura e usos da Língua Brasileira de Sinais - Libras.
Em relação às línguas indígenas, pode-se mencionar as pesquisas do Núcleo de Pesquisas Linguísticas (NuPeLi) do Museu Nacional, coordenado por Bruna Franchetto (1950-) que possui um extenso trabalho com os Kuikuro, do Alto Xingu. Yonne Leite (1935-2014), também do Museu Nacional, teve destacada trajetória nos estudos de línguas indígenas no Brasil, tendo sido presidente da Associação Brasileira de Antropologia (1998-2000). Há também os trabalhos recentes de Pedro Cesarino com cantos marubo e os de Danilo Paiva Ramos com aspectos linguístico-antropológicos entre os Hupd’äh, do Alto Rio Negro. Além disso, a Universidade Federal do Acre (UFAC) realiza anualmente o Congresso de Linguagens e Identidades Amazônicas (LIA), no qual são apresentados trabalhos na interface entre antropologia e linguística. Criada em 2009, a Revista Brasileira de Linguística Antropológica é uma publicação anual do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas, da Universidade de Brasília (UnB), que oferece acesso a uma ampla gama de pesquisas sobre esse tema. A Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) costuma incluir grupos de trabalho dedicados a discussões sobre a antropologia linguística.
Como citar este verbete:
SAVOLDI, Dora. “Antropologia linguística”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2024. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/subcampos/antropologia-linguistica
ISSN: 2676-038X (online)
Dora Savoldi
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