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Panema

Palavra de origem tupi, panema designa um conceito conhecido desde o início do período colonial, estando presente nas obras de cronistas dessa época como As singularidades da França Antárctica (1978 [1557]) de André Thévet (1502-1590) e o Tesoro de la lengua guaraní (1639) de Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652). Como tantas outras palavras e ideias de origem tupi, o termo circulou pela América do Sul e hoje é usado por comunidades de pescadores, de seringueiros, por quilombolas, por populações urbanas, e adotado por indígenas de outras famílias linguísticas. Em línguas caribe, aruaque, yanomami, arikém, jê, katukina, pano, jabuti e tikuna, por exemplo, existem termos próprios que guardam sentidos análogos ao de panema. Seus significados mais conhecidos são o de azar, má sorte e infelicidade. Eles são de uso popular, estão dicionarizados e vêm sendo assim reproduzidos desde os primeiros estudos antropológicos sobre o tema.

A panema remete aos contextos do insucesso na caça, na pesca, nas roças, nas relações conjugais, entre entes variados. Ela qualifica as pessoas, mas também cachorros que não matam caça; árvores que não dão frutos; espingardas que não atiram; e, ainda, rios que não dão peixes. Em todos os casos, trata-se de expectativas frustradas, algo que não age como deveria, que não produz o que se esperaria, tendo normalmente viés negativo.

Na etnologia indígena existem dois artigos de síntese sobre o assunto: Panema (1951) de Eduardo Galvão (1921-1976) e Panema: uma tentativa de análise estrutural (1975 [1967]), escrito por Roberto DaMatta (1936). O primeiro apresenta a panema como uma “crença do caboclo amazônico”, produto do “processo de fusão” entre crenças indígenas e ibéricas. Texto curto, mas bastante analítico, tem o mérito de ressaltar a importância da panema como um aspecto da vida comunal e cotidiana. O segundo é declaradamente teórico-metodológico. O autor propõe abordar o tema por meio de um teste do método da análise estrutural em antropologia desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Em ambos os casos, o material analisado provém de trabalhos com populações da Amazônia tidas à época como caboclas, sendo que a análise de DaMatta se vale de dados secundários com base nos trabalhos de Charles Wagley (1913-1991) e do próprio Galvão.

Desde as obras dos cronistas já chamava atenção o fato da panema envolver causalidades peculiares e complexas. Elas remetem a problemas existenciais, a questões morais e a fatores organizacionais, além de qualificar estados, capacidades e experiências. Esses aspectos foram percebidos por Galvão, mas foi com DaMatta que a atenção à teoria da causalidade da panema tomou um caráter teórico mais detido e refinado, que também presenciamos contemporaneamente em Caipora e outros conflitos ontológicos (2013) de Mauro W. B. Almeida (1950). Destacam-se causas relacionadas à potência de contágio do sangue menstrual e outros fluídos corporais; à sovinice, principalmente no contexto da obtenção e compartilhamento de alimento; e à relação direta com seres potencialmente causadores de panema, como quando se insulta o animal que se pretende caçar ou, simplesmente, se enuncia a intenção de caçar. Dessa forma, a panema pode ser considerada um objeto etnográfico significativo na etnologia sulamericanista, tendo sido comparada por Galvão a fenômenos como o mana melanésio, por DaMatta com o totemismo e por Almeida com o conceito de gravidade na física.    

Pierra Clastres, "Krembegi (Homem panema entre os Aché)", L'Arc et le panier, 1966

Uma busca pela internet fornece mais de uma centena de textos acadêmicos que citam o conceito. Todavia, na imensa maioria dos casos, o tema é tratado indiretamente, seja em monografias ou em artigos. Há cinco trabalhos que constituem exceções. No clássico O arco e o cesto (1966) de Pierre Clastres (1934-1977), o autor trata do tema antecipando os estudos de gênero e masculinidade entre povos das terras baixas da América do Sul, apresentando uma importante contribuição sobre esses temas, também para outras subáreas da antropologia. Partindo do suposto de que a reciprocidade é um elemento estruturante da vida dos Aché, povo indígena que vive no Paraguai, Clastres argumenta que homens panema na caça não cumprem com as expectativas de masculinidade, quebrando as redes de reciprocidade alimentares e, também, matrimoniais. Assim, ocupam um lugar “a meio caminho” entre os papéis típicos de homens e mulheres para aquele povo. Mais recentemente, os artigos “Lugar de mulher”: representações sobre os sexos e práticas médicas na Amazônia (Itapuá/Pará) (1998) e Mulheres pescadoras e a ressignificação do mito da panema na Amazônia (2011), respectivamente de Maria Angélica Motta-Maués (1940) e Iraildes Caldas Torres (1962), tratam a panema como parte de um ideário de dominação contra as mulheres na Amazônia, fornecendo interessantes análises também sobre mudanças históricas na região. O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia (2012), de Uirá Felipe Garcia (1977), aborda a articulação entre caça, guerra e doença entre os Awá-Guajá, povo indígena da Amazônia maranhense. Garcia demonstra como as relações entre caças e caçadores podem ser entendidas por meio das concepções awá sobre a pessoa humana. Nesse âmbito, a panema compõe um complexo quadro de agressões físicas e morais causadas pelas caças. Por fim, Pani’em. Um esboço sobre modos de saber entre os Zo’é (2017), mestrado de Leonardo Viana Braga (1988), é até o momento a única monografia dedicada especificamente ao conceito entre povos indígenas e não indígenas. Nesse trabalho, o autor se dedica a pensar os conhecimentos referentes à caça e, consequentemente, à panema entre os Zo’é, povo indígena amazônico. Para esse povo, homens panema podem ser comparados a mulheres, pois estas não caçam, a panema tendo, portanto, implicações em termos de gênero. Porém, o autor argumenta que, diante de uma miríade de casos de homens panema, é necessário balizar as diferenças entre eles, uma vez que suas vidas não se reduzem ao papel de (não)caçador, havendo aqueles que são, ao mesmo tempo homens panema e chefes, por exemplo.    

A questão da panema já foi abordada por diferentes vieses teóricos e aparece diretamente relacionada com temas importantes da subdisciplina tais como a guerra, a reciprocidade, o parentesco, o xamanismo, a chefia, a religião, o ritual, o gênero e a sexualidade. Além da etnologia, ela é abordada em áreas de estudo específicas como a conservação ambiental, a saúde indígena e os estudos feministas. Dessa forma, debates candentes que ultrapassam a antropologia incluem a panema, mesmo que indiretamente. Isso ocorre desde o interesse pela clássica oposição entre natureza e cultura (ao se levar em consideração etnograficamente a agência animal e de outros seres), passando pelo tema do poder em estudos de gênero (atentos ao lugar das mulheres na dinâmica causal da panema), até a atenção sobre saberes tradicionais, que abarca o lugar dos conhecimentos locais e práticas de manejo na elaboração e efetivação de políticas públicas socioambientais.   

Como citar este verbete:
BRAGA, Leonardo Viana. 2020. "Panema". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/conceito/panema

ISSN: 2676-038X (online)

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bibliografia

ALMEIDA, Mauro W. B., “Caipora e outros conflitos ontológicos”, R@U- Revista de Antropologia da UFSCar, São Carlos-SP, janeiro-junho, v.5, n.1, 2013, p. 7-28

BRAGA, Leonardo Viana, Pani’em. Um esboço sobre modos de saber entre os Zo’é, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 2017 

CLASTRES, Pierre, “L’arc et le panier” (1966) In: La société contre l’État et autres essais, 1974. (Trad. Bras. Théo Santiago. Prefácio Tânia Stolze Lima e Márcio Goldman. São Paulo, Cosac & Naif, 2003) 

DAMATTA, Roberto, “Panema: uma tentativa de análise estrutural” (1967). Ensaios de antropologia estrutural, Petrópolis, Editora Vozes, 1975, 2a ed.

GALVÃO, Eduardo, “Panema. Uma crença do caboclo amazônico”, Revista do Museu Paulista, n.s., vol. V, 1951, p. 221-225

GARCIA, Uirá F., “O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia”, Anuário Antropológico, v. II, 2012, p. 33-55

MOTTA-MAUÉS, M. A., “‘Lugar de mulher’: representações sobre os sexos e praticas médicas na Amazônia (Itapuá/Pará) In: Paulo César Alves; Maria Cecília S. Minayo (org.), Saúde e doença: um olhar antropológico, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1998, 2ª ed., v.1  

MONTOYAS, Antonio Ruiz de, Tesoro de la lengua guaraní (1639), Asunción, Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch” – CEPAG, 2011

THEVET, André, F, Les singularitez de la France antarctique, Paris, Chez les Heritiers de Maurice de la Porte, 1558 (Trad. bras. Eugenio Amado. Petrópolis, Itatiaia, 1978)

TORRES, Iraildes Caldas, “Mulheres pescadoras e a ressignificação do mito do Panema” In: Iraildes Caldas Torres & Fabiane Vinente dos Santos (org.), Intersecção de Gênero na Amazônia, Manaus, Editora da Universidade Federal do Amazonas, EDUA, 1ed., v.1, 2011, p. 108-117

WAGLEY, Charles, Uma comunidade amazônica. Estudo do homem nos Trópicos, São Paulo, Companhia Editora Nacional, Brasiliana, vol. 290, 1957