obra
Êxtase religioso

Em Êxtase religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo (1971), o antropólogo escocês Ioan Myrddin Lewis (1930-2014) se propõe a comparar experiências de possessão por espíritos distintos, vivenciadas no interior de sociedades diferentes. Preocupado em evidenciar o potencial sociológico do êxtase para aqueles que o experimentam, o antropólogo tenta cobrir o que acredita ser uma lacuna deixada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), cuja análise sobre o xamanismo enfatizaria as estruturas lógicas e suas relações com os mitos. Beneficiando-se de registros de Raymond Firth (1901-2002), Margaret Mead (1901–1978), Alfred Métraux (1902–1963), Siegfried Frederick Nadel (1903-1956), Gregory Bateson (1904–1980), Jean Rouch (1917-2004), Peter Fry (1941 -) e outros, a obra de Lewis compara materiais etnográficos desses autores, e os seus próprios sobre povos da Somália, e interpreta as diversas experiências do êxtase e dos cultos de possessão em suas relações com as condições sociais que as inspiram. Entre elas estão as tensões entre gêneros, as rivalidades intergrupais e os modos de relacionamento com a moralidade pública; a possessão é definida em função do que é capaz de promover em termos de funções e impactos. Aluno de Edward E. Evans-Pritchard (1902-1973), Lewis foi professor emérito da London School of Economics and Political Science (LSE), e reconhecido por suas contribuições teóricas a respeito dos modos de vida, da vida política e da organização social de povos da Somália.

A obra é composta por sete capítulos. Nos iniciais, o autor discute as categorias que constituem os fenômenos. Transe, segundo a definição do Penguin Dictionary of Psychology adotada pelo antropólogo, é o estado de dissonância psíquica ocasionada pelo uso de indutores alucinógenos ou de privação sensorial. Possessão, por sua vez, compreende a avaliação que as culturas realizam quando estimuladas a interpretar o transe – por variarem em pressupostos e referências, cada cultura avalia o fenômeno ao seu modo. Ao pensar essas experiências nos termos daqueles que a vivenciam, a obra demarca ainda o lugar de certo relativismo cultural no pensamento do autor, que se contrapõe à sensibilidade psicológica ocidental defendida por psicanalistas-antropólogos como George Devereux (1908-1985) e adotada por autores como Lewis Langness (1929–2018), para quem tais experiências estariam inscritas em registros médicos psicopatológicos como histerias, transtornos de múltiplas personalidades, esquizofrenias e dissociações da identidade individual. Finalmente, a leitura crítica das teses de Mircea Eliade (1986-1907) em Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase (1951) leva Lewis a conceituar xamanismo como instituição religiosa que funciona por meio da incorporação de espíritos, e o xamã a pessoa capaz de controlá-la (o que o converte em uma autoridade). A despeito das separações estabelecidas, as noções tendem a se superpor ao longo do livro.

Gian Lorenzo Bernini, "O êxtase de Santa Teresa", escultura, c. 1644-52. © Arquivo David Finn, fotografia, Department of Image Collections, National Gallery of Art Library, Washington, DC. Licença de reúso com atribuição CC 4.0

O autor distingue experiências de possessão em duas modalidades: “cultos periféricos” e “cultos centrais”. Os primeiros - “periféricos” por dizerem respeito a espíritos alheios ao conjunto de entidades cultuadas por determinadas sociedades - são observados em contextos marcados por segregação. A presença de tensões sociais é condição para sua ocorrência: pessoas, sobretudo mulheres, em condições de desprivilegio social e econômico são acometidas por espíritos infortunados, que lançam as vítimas a estados recorrentes de enfermidade. O processo de cura envolve reparações econômicas por parte de seus maridos que cedem ao desejo feminino por roupas, oferendas e cerimoniais da entidade possuidora, que reclama contrapartidas. As mulheres tendem a se filiar aos cultos periféricos que oferecem a possibilidade de ascensão ao status de xamã. Muito embora a validade política da médium feminina seja inferior, em razão da “amoralidade” das entidades com as quais se relacionam, a experiência serve, segundo o antropólogo, como “arma” das oprimidas na desigual “guerra” entre os sexos; estas encontram na possessão por espíritos estrangeiros, um mecanismo político eficiente para desafiar a superioridade masculina e ascender socialmente.

Com os “cultos centrais”, Lewis refere-se a experiências que acometem pessoas localizadas em centros de decisão e poder. As entidades manifestam a moralidade pública e, nessas ocasiões, o xamã, possuído por um espírito central, assume o status de juiz de sua sociedade. Quando o acometido é incapaz de controlar sua própria possessão - atribuição exclusiva da autoridade xamânica - o infortúnio é atribuído à condição moral questionável do possuído ou à conflitos intertribais. A possessão nesses cultos assume igualmente papel de tecnologia política; por um lado, aquele que ofende a moral pública pode ser tomado por enfermidades de ordem espiritual (a possessão como penalidade jurídica) e, por outro, quando xamãs rivais encaminham espíritos malignos para assolarem membros de agrupamentos opositores (a experiência funcionando como uma arma entre sociedades rivais).

Mais próximo de Carl Jung (1875-1961) do que de Sigmund Freud (1856-1934), Lewis reconhece no xamanismo um equivalente terapêutico em razão de seu papel institucional na reorientação dos afetos e das insatisfações coletivas. Foi este estudo comparativo sobre o êxtase religioso que o lançou para leitores outros que não apenas os interessados nos modos de vida africanistas. Apesar de não ter tido grande impacto na antropologia brasileira, a obra conta com três edições em inglês, traduções na França e no Brasil, e sucedeu à literatura “somaliana” do autor que entre as quais estão The Somali Lineage System and the Total Genealogy: A General Introduction to Basic Principles of Somali Political Institutions (1957) e A Pastoral Democracy (1961).

Como citar este verbete:
CUNHA, Lucas Ramos da. 2023 "Êxtase religioso". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/extase-religioso

ISSN: 2676-038X (online)

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e
data de publicação
01/07/2023
autoria

Lucas Ramos da Cunha

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