Publicada originalmente em 1936, Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas da cultura de uma tribo da Nova Guiné é uma obra baseada no trabalho de campo que Gregory Bateson (1904-1980) realizou entre os Iatmul (povo das terras baixas do rio Sepik, Nova Guiné), ao longo de 1929 e 1932. Uma das principais contribuições da obra é fazer do comportamento ritual o centro da investigação antropológica.
A monografia focaliza as atitudes observadas durante o ritual nativo naven, analisando-as a partir de diferentes pontos de vista científicos, parciais mas complementares entre si. A cerimônia que dá título ao livro ocorre para comemorar realizações culturalmente valorizadas de um jovem iatmul. Sua principal figura é o tio materno (wau) que, em clima de bufonaria, “traveste-se” em “repugnantes” (velhas, sujas) roupas femininas. Nesse contexto, procura seu sobrinho (laua) e, ao encontrá-lo, o embaraça com uma “saudação sexual”: esfrega suas nádegas na canela do laua, o qual deve dar objetos de valor para que o wau “fique bom”. Ainda que este “travestismo” se irradie com modos e intensidades variadas entre diversos parentes ligados ao laua, e que o naven não se limite à relação entre laua e wau (o que não passa despercebido por Bateson), é aí que reside o centro e parte mais significativa da cerimônia, seu ponto de partida e foco de sua análise.
As escolhas metodológicas e o modo de exposição dos problemas nesta obra – primeira e única monografia escrita por Bateson – fazem ressoar as múltiplas facetas de seu percurso intelectual. Em Naven, a relação do autor com o estrutural-funcionalismo, por meio do qual ele trava o seu contato inicial com a Antropologia, é marcadamente heterodoxa: ainda que lide com questões relativas à integração social no livro – caras à tradição britânica na qual se forma – enfatiza ser insuficiente, do ponto de vista explicativo, tomá-las isoladamente. Nesse sentido, busca em outros campos disciplinares (como a psiquiatria) e tradições antropológicas (como a norte-americana) instrumentais analíticos que permitam observar novos aspectos do fenômeno cultural. Por um lado, através do exame do que denomina eidos iatmul, Bateson explicita modos de pensamento culturalmente padronizados, premissas e operações de identificação relevantes para o “comportamento naven” do wau, inspirando-se no trabalho seminal de Radcliffe-Brown (1881-1955) sobre o irmão da mãe na África do Sul. Por outro lado, observa expressões características da emoção iatmul, de seu ethos, e o valor específico a elas atribuído durante a cerimônia, o que mostra como a análise do naven encontra-se repartida em um ponto de vista sociológico, um eidológico-cognitivo e outro etológico-afetivo. Apesar da separação meticulosa dos planos de análise, Bateson esclarece que o material sobre o qual se baseia o estudo é o mesmo, concluindo, no balanço autocrítico efetuado nos epílogos das edições de 1936 e de 1958, que as perspectivas adotadas são apenas maneiras pelas quais os cientistas organizam a sua descrição, e que, portanto, nem o ethos, o eidos ou a estrutura social têm uma existência independente da explicação científica. Por essa razão, Bateson considera que Naven é principalmente um “estudo sobre a natureza da explicação”, através do qual se deduz a impossibilidade de totalização explicativa do fenômeno trabalhado, já que sempre haverá resíduos e impurezas que escapam a qualquer tentativa de análise.
Se a investigação é construída a partir de planos heterogêneos, há um fenômeno que os atravessa: a cismogênese, que Bateson define como “criação da separação”. Formulada para demonstrar o potencial disjuntivo da relação entre as diferentes ênfases emocionais atribuídas a cada sexo (derivada da análise do ethos), a cismogênese também foi notada na descrição dos padrões de fissão da estrutura social iatmul (perceptíveis pelo prisma sociológico) e nos modos de operação dos dois tipos de dualismo encontrados no pensamento iatmul (que se mostram pelo exame do eidos). A ligação entre as análises afetiva e cognitiva, tornada possível pela persistência da cismogênese, faz com que Bateson proponha uma relação entre estímulos e reações para compreender como ethos e eidos são inculcados no indivíduo. Tal discussão expressa o interesse do autor nos processos de aprendizagem, intimamente ligados às suas reflexões posteriores sobre teoria da comunicação e cibernética.
Naven não foi uma obra recebida com destaque pelo establishment antropológico de sua época; recentemente, contudo, o livro tem fornecido grandes inspirações para a antropologia, lembremos a importância do conceito de cismogênese para a antropologia de Roy Wagner (1938), como mostra o seu A invenção da cultura (1975); a influência da descrição dos ethos sexuais iatmul para as análises do gênero na Melanésia, realizadas por Marilyn Strathern (1941) em O gênero da dádiva (1988) e a relevância do naven para a análise do ritual proposta por Michael Houseman e Carlo Severi, em 1994. Como se vê, uma obra que forneceu potências renovadoras ao pensamento antropológico ao longo das últimas décadas.
Como citar este verbete:
MONTEIRO, Eduardo Santos Gonçalves; BRUSCO, Rodrigo Rossi Mora. “Naven”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/naven>
ISSN: 2676-038X (online)
Eduardo Santos Gonçalves Monteiro e Rodrigo Rossi Mora Brusco
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