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Barracoon: the story of the last “Black Cargo”

Barracoon: the story of the last “Black Cargo” é o primeiro livro escrito por Zora Neale Hurston (1891-1960), novelista, folclorista e antropóloga, publicado em 2018, oitenta e sete anos após a sua realização. Com financiamentos da Association for the Study of Negro Life and History e da American Folklore Society, Hurston, à época uma das únicas antropólogas negras atuando nos Estados Unidos, viaja para os estados da Flórida e do Alabama em 1927 por sugestão de Franz Boas (1858-1942), de quem havia sido aluna, e a pedido do Journal of Negro History. O objetivo era produzir um artigo sobre o último “carregamento” do navio negreiro Clotilda, de 1860, do qual Cudjo Lewis (c.1841-1935) seria o único sobrevivente. Na ocasião Hurston conduziu uma pesquisa histórica a partir de fontes da Mobile Historical Society - notadamente o livro Historic Sketches of The South, escrito por Emma Langdon Roche (1878-1945) em 1914 – além de uma entrevista com Lewis na cidade de Mobile, no Alabama. Meses depois, a antropóloga retorna à cidade por um período de três meses, durante o qual realizou uma série de encontros com Kossola Oluale (nome primeiro de Cudjo Lewis, pelo qual passou a chamá-lo) que culminou na escrita de Barracoon. O título da obra refere-se aos barracões da costa de Uidá (atual República do Benim, na África ocidental), onde cativos eram mantidos para a venda no mercado transatlântico de africanos escravizados.

Embora concluído em 1931, o manuscrito permaneceu por um longo período arquivado na Universidade Howard. Na época, editoras recusaram a publicá-lo no modelo original, em razão da grafia preservar a dicção vernácula de Kossola, distinta do inglês considerado oficial. A primeira edição da obra foi viabilizada pela Amistad, editora norte-americana dedicada a publicações de escritores afro-americanos. Na abertura do livro, a escritora e ativista feminista Alice Walker (1944-), pioneira na revitalização do legado de Hurston na década de 1970, define Barracoon como uma “obra-mestra” (em razão do ponto de vista analítico e narrativo femininos), que expõe a violência das guerras e do tráfico negreiro, oferecendo uma imagem transformada dessa cena por meio da experiência de Kossola.

Emma Langdon Roche, "Cudjo Lewis", 1914 (detalhe). Fotografia. Historic Sketches of the South, New York: Knickerbocker Press, 1914. Imagem em Domínio Público.

O livro conta com doze capítulos, um apêndice dedicado às tradições e costumes dos Isha de Banté, subgrupo de língua yorubá, além de materiais adicionados pela editora e revisora da obra, Deborah G. Plant (1956-). O fluxo da narrativa segue a história de Kossola contada por ele próprio. À maneira dos griots (guardiões e contadores de histórias africanas), ele compartilha com a antropóloga memórias do cotidiano, a mitologia e os rituais de seu povo, até o momento de sua captura aos 19 anos, quando o rei do Daomé atacou o território isha, aprisionando e levando seus moradores para o barracão de escravos, onde foram vendidos para compradores brancos. Narra também os dias em que esteve confinado no navio Clotilda; os anos trabalhando às margens dos rios Alabama e Tennessee; e quando, enfim livre, trabalha junto aos seus conterrâneos na compra de terras e na construção da comunidade AfricaTown (fundada em 1866, no sul do Alabama), onde Kossola se casou e teve seis filhos. Nos últimos capítulos, são evocadas as lembranças acerca da violência racial vivenciada por sua família; as mortes dos filhos e da esposa; a rotina da velhice e a dor da solidão. A voz de Hurston, por sua vez, é apresentada ao leitor em segundo plano, como pequenas notas descritivas entre as falas de Kossola e o relato de seus encontros com ele. Mas longe de mostrar-se uma observadora distanciada, a antropóloga aparece como uma interlocutora implicada no diálogo, que estimula Kossola a contar histórias à sua própria maneira [storytelling], transcrevendo-as com detalhes não apenas de conteúdo, mas atenta aos ritmos, expressões, gestos e comportamentos registrados no curso da narração.

Mesmo escrito num período em que a antropologia norte-americana buscava institucionalizar métodos científicos tais como desenvolvidos por Franz Boas, como enfatiza a própria Hurston no prefácio original, e ainda que fiel a certo rigor antropológico - perceptível na utilização de bibliografias como as de Emma Langdon Roche, Richard F. Burton (1864) e Frederick E. Forbes (1851), que contextualizam o recorte histórico e fundamentam informações -, o livro não almeja ser uma monografia científica convencional. Trata-se de uma narrativa encadeada por memórias e histórias de vida, traço que pode ser reencontrado em trabalhos posteriores da autora, como em sua tese de doutoramento Mules and Men (1935) e na ficção, Seus olhos viam Deus (1937).

Comentários sobre a obra, como o do antropólogo Messias Basques (de 2019), destacam que seu estilo narrativo reflete o jeito “griô” [griot] das tradições africanas e o método etnográfico apresenta uma resposta original aos debates mobilizados cinquenta anos mais tarde na chamada fase pós-moderna da disciplina, sobretudo por duas razões. Além de estabelecer o que Basques denomina de “processo de correspondência”, que reconhece Kossola Oluale como co-autor e não um mero “nativo” ou “informante”, Barracoon levanta questões importantes a respeito da tradução antropológica, da autoridade etnográfica e da polifonia textual. O que tem feito não apenas da obra em questão, mas da trajetória e do pensamento de Hurston, uma referência crescente nos estudos de tradução literária e nos debates decoloniais no Brasil.

Como citar este verbete:
PORTUGAL, Larissa. 2021. "Barracoon: the story of the last “Black Cargo”". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/barracoon-story-last-black-cargo

ISSN: 2676-038X (online)

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bibliografia

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ERICKSON, Sandra Fernandes & ECHAZÚ BÖSCHEMEIER, Ana Gretel, “Apresentação do Número Especial”, Ayé: Revista de Antropologia, Número especial Fire!!! Textos escolhidos de Zora Neale Hurston, 2021, p. 4-28

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ROCHE, Emma Langdon, Historic Sketches of the South, New York, Knickerbocker Press, 1914

WALKER, Alice, “In Search of Zora Neale Hurston” (1975), Ms. Magazine, p. 74-89 (Trad. Bras. Victória Barbosa e Ana Gretel Echazú Böschemeier, Ayé: Revista de Antropologia, Número especial Fire!!! Textos escolhidos de Zora Neale Hurston, 2021, p. 109-134)