obra
Veiled sentiments: honor and poetry in a Bedouin society

Veiled sentiments: honor and poetry in a bedouin society (1986), referência no seio da antropologia das formas expressivas e das emoções, é o primeiro livro publicado pela antropóloga norte americana Lila Abu-Lughod (1952-). A obra trata dos elos complexos entre organização sócio-política, sistema moral e expressão dos sentimentos entre os Awlad 'Ali, população beduína do Egito Ocidental, junto à qual ela realizou seu trabalho de campo no início da década de 1980. Em uma interpelação crítica a abordagens limitadas à homogeneidade do discurso oficial da cultura sobre ela mesma e aos modelos individualistas de tratamento das emoções, a autora constrói seu argumento em torno do contraste entre dois modos discursivos coexistentes entre os beduínos: o da vida ordinária, pautado pela honra e por uma linguagem “agressiva”, e um discurso poético que, enunciado em contextos privados, ressalta vulnerabilidade e afeição. Considerada um exemplo de análise discursiva inspirada em Michel Foucault (1926-1984), a atenção da obra de Abu-Lughod à intimidade da vida doméstica das mulheres em suas conexões com a moralidade e a organização sócio-política beduína é crucial para a elucidação da complementaridade desses discursos na lógica do sistema moral dos Awlad 'Ali e dos modos culturalmente construídos de expressar e sentir as experiências pessoais.

CAPA DA NOVA EDIÇÃO DO LIVRO, COMEMORATIVA DO 30º ANIVERSÁRIO DE LANÇAMENTO. REPRODUÇÃO AUTORIZADA PELA AUTORA.

A relação entre as duas seções do livro está baseada nessa contraposição. Na primeira, a autora apresenta distintas facetas da ideologia oficial beduína que refletem a divergência entre o ideal igualitário da estrutura patrilinear e as hierarquias social e de gênero. De um lado, um rígido código de honra no qual a capacidade de alguns homens de “encorporar” os valores supremos do autocontrole, autonomia pessoal e política torna-se a medida para sua posição hierárquica; sendo dependentes econômica, física e socialmente, os homens jovens e, sobretudo, as mulheres estão impedidos de realizar tal ideal. De outro lado, a modéstia sexual, expressão da deferência voluntária na relação com os hierarquicamente superiores, é o modo pelo qual as mulheres expressam respeito pelo sistema hierárquico e, ao fazê-lo, valorizam-se moralmente no interior deste (a obediência deliberada ao sistema moral aparece como virtude feminina). Abu-Lughod descreve, assim, modos ideológicos por meio dos quais os Awlad 'Ali conciliam ideais igualitários e hierárquicos, demonstrando a relação dialética entre honra e modéstia, caminhos distintos que convergem para a valorização moral de famílias e pessoas.

A segunda parte da obra desdobra o contraste entre o discurso público, marcado por uma linguagem agressiva e altiva, e os ghinnawas, pequenas canções poéticas que remetem à intimidade pessoal e expressam sentimentos negados pelo sistema moral público por sua conotação de fraqueza e dependência: dor, melancolia, tristeza, amor romântico. Tal oposição emerge em distintos momentos da vida social, sobretudo nas crises de perda pessoal, como a morte e o divórcio, ou nas relações amorosas, que suscitam reações diferentes no mundo público e privado. Ao constituir meio de expressão culturalmente sancionado para sentimentos que ameaçam os valores do próprio sistema moral oficial, a poesia fornece uma imagem contrapontística ao sistema moral beduíno: o aspecto subversivo da fórmula poética tradicional é valorizado na medida em que se integra ao próprio código da honra e autonomia beduína, e da escolha virtuosa pela deferência. Trata-se, portanto, de duas linguagens disponíveis para expressar e sentir as experiências pessoais, cuja articulação reflete contradições profundas entre princípios hierárquicos e igualitários do sistema sócio-político. Nesse sentido, Veiled sentiments abre-se na direção de debates em torno dos limites do caráter subversivo da arte e dos modos de expressão e construção cultural dos sentimentos.

As resenhas a respeito do livro ­- entre as quais, uma bastante elogiosa de Clifford Geertz (1926-2006) - indicam sua recepção positiva da obra na academia norte-americana e evidenciam a multiplicidade de campos e questões que o atravessam, por exemplo, o trabalho reflexivo sobre o campo, necessário para a explicitação do vínculo entre a posição social do etnógrafo e a construção de relações específicas e situadas de conhecimento, algo vislumbrado no capítulo inicial do livro e desdobrado em sua segunda obra, Writing women’s worlds (1993). Veiled sentiments insere-se, dessa forma, ao lado de trabalhos como os de Donna Haraway (1944- ), Edward Said (1935-2003), George Marcus (1943- ) e James Clifford (1945- ) em uma ampla discussão acerca das relações entre política e escrita etnográfica, sobre o caráter situado do conhecimento e suas implicações éticas e epistemológicas.

Como citar este verbete:
MONTEIRO, Eduardo Santos Gonçalves. 2018. "Veiled sentiments: honor and poetry in a Bedouin society". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/obra/veiled-sentiments

ISSN: 2676-038X (online)

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V
data de publicação
03/07/2018
autoria

Eduardo Santos Gonçalves Monteiro

bibliografia

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